#Uruguai- Dia 04 - Espinilho Alvorada RS
fevereiro 03, 2024Apesar do banho não ter sido nada quente, eu dormi muito bem. De manhã cedo acabei enrolando por um tempo na cama. Mas eu não poderia demorar muito, afinal dessa vez eu deveria pedalar muito mais do que apenas 100 km. O plano 164 km até o Chuí. Quando terminei de me arrumar, minha panturrilha esquerda começou a doer demais, eu senti que isso me traria problemas mais para a frente. Acabei encontrando uma maneira de pedalar que fosse possível suportar a dor. Tive que usar pela primeira vez um produto que levei na viagem, para dores musculares. Acabou funcionando, e conforme meu corpo esquentava, a dor foi amenizando.
A estrada continuava deserta dos dois lados, apenas campos. A parte mais legal foi quando passei pela área onde ficavam as capivaras, eu nunca havia visto tantas ao mesmo tempo. Eram realmente muitas capivaras! Essa área se estendia por muitos quilômetros, e mesmo sendo cercada, para as capivaras não cruzarem as rodovias, ainda assim era possível encontrar algumas atropeladas no acostamento.
As paradas para descanso foram mais complicadas, pois com as pausas os músculos esfriavam, e a dor na panturrilha parecia incomodar mais, mas eu não podia parar, eu estava no meio do nada. Finalmente cheguei ao tal posto 100 km depois daquela placa na entrada da reserva do Taim: era minha oportunidade para almoçar. Não foi o melhor bauru que comi na vida, mas matou minha fome. Quando voltei para a estrada, ainda faltavam 80 km até o Chuí. Eu chegaria à noite novamente, mas dessa vez muito mais tarde, pois a perna continuava doendo e o vento não ajudava.
Porém, algo inesperado aconteceu. Faltando uns 60 km até a parada no Chuí, eu passei por um pedaço de estrada onde uma fileira de eucaliptos fazia um corredor muito bonito, uma espécie de túnel verde. Eu aproveitei para tirar algumas fotos e parei para um pequeno descanso. De repente eu olhei para o outro lado da estrada e vi um rapaz todo de preto parado com uma bicicleta. Eu não tinha percebido que ele estava ali até olhar para a minha esquerda. Como eu vi que ele também carregava bolsas e bagageiros na bicicleta para uma cicloviagem, assim como eu, me aproximei. E para minha surpresa, era o cara que estava falando em inglês na noite anterior!!! Era muita coincidência. Descobri que seu nome era Ashley, ele era australiano, e pasmem: também estava indo para Montevidéu. Eu mal podia acreditar. Ele me contou que havia vindo ao Brasil e desembarcado de avião no Rio de Janeiro, 30 dias atrás, e veio desde lá pedalando em sua bicicleta. Eu fiquei sem palavras com tanta empolgação. Perguntei se eu poderia acompanhar ele, já que eu também estava indo para a mesma direção, e ele apenas respondeu: "Yeah, sure. Let's do it!". Aos poucos ele foi me contando sua história, de quando ele pedalou do norte ao sul de toda a África, boa parte da Europa, e alguns países do Oriente Médio. Em sua bicicleta, ele já havia percorrido 40.000 km! Até o final dessa viagem, que tinha como trajeto a descida do RJ até o Uruguai, seguindo pela Argentina, Chile, Peru, Bolívia, e subida até o México, ele pretendia completar 58.000 km, em aproximadamente 83 dias.
Encontrar aquele cara no meio do nada, em uma estrada deserta, depois de vê-lo sem querer na noite anterior, foi a coisa mais aleatória de toda a minha viagem. Isso fez meu ânimo se elevar absurdamente, pois agora eu não apenas teria companhia, como também teria alguém com uma enorme experiência nesse tipo de viagem. Enquanto seguimos pedalando, perguntei tudo que vinha em minha mente sobre as viagens que ele já havia feito. Eu já tinha quase certeza de que não conseguiria chegar até o Chuí ao fim do dia, e o Ashley usava um aplicativo no celular para cicloviajantes dizendo que havia um lugar disponível para passar a noite, poucos quilômetros a frente. Achei uma excelente ideia, não teria problema mudar o itinerário, já que iria escurecer logo e eu estava cansado. O local não chegava nem a ser uma cidade, de tão pequeno. O ponto mais movimentado era o posto de combustível, que ficava na beirada da BR. Descobrimos que na verdade não havia pousada nem hotel para ficar ali, o que era estranho pois o aplicativo do Ashley dizia o contrário, mostrando que havia um local de passagem onde ciclistas já se hospedaram. Perguntei para uma atendente na loja do posto se havia quem sabe alguém que pudesse nos hospedar apenas para dormir, e ela disse que poderíamos ficar no antigo posto da polícia, que ficava ao lado do posto de gasolina. Para nós estava perfeito. O local era realmente um lugar abandonado que pertencia a prefeitura, mas pelo menos havia um abrigo com porta e luz elétrica.
Logo descobrimos que o lugar que era citado no aplicativo era realmente aquele, todas as paredes eram repletas de mensagens de ciclistas de todas as partes do mundo. A maioria eram da América Latina, mas haviam mensagens inclusive de outros continentes, com desenhos de bicicletas por todos lados. As datas eram de diversos anos, alguns de poucos meses atrás, outras de quase dez anos. A mais recente que encontrei estava lá há poucas semanas. O lugar era realmente um templo para ciclistas, um local de passagem, que não estava nos mapas, era apenas para quem conhecia. Eu e o Ashley ficamos maravilhados vendo todas aquelas paredes com mensagens de destinos e de incentivos, algumas eram frases de músicas ou de algum filme, mas quase todas com algum desenho de uma bicicleta. E, claro, procuramos um espaço para deixarmos nossa própria lembrança naquele lugar. Eu deixei a rota que eu estava fazendo "POA - Montevidéu", com a data, um desenho de uma bicicleta e as iniciais do meu nome. O Ashley deixou uma frase do livro Duna.
Porém, havia um grande problema: o lugar não contava com camas, e muito menos cobertores, estava muito frio, uns 8ºC, e já estava escuro. O Ashley tinha o seu saco de cormir, e eu tinha apenas mais algumas roupas no bagageiro. Elas teriam que ser suficientes. Depois de jantarmos no posto ao lado, voltamos para o local de abrigo. Eu nunca havia falado tanto em inglês antes. Conversamos sobre diversos assuntos, olhando para o céu, e foi muito legal descobrir que ele fazia Física Teórica antes de abandonar por causa da pandemia e conseguir um emprego. Ficamos horas conversando, mas o sono chegou e tivemos que arranjar um canto para dormir. Ele ficou em seu saco de dormir na sala, e eu arranjei uma porta velha para pelo menos dormir em cima. Era horrível, o lugar mais duro onde já deitei. Coloquei todas as roupas que eu havia trazido, e como alguams delas eram termicamente isolantes, até que não passei frio, eu apenas não me esquentei. Usei minha mochila como travesseiro. Sinceramente, eu estava tão empolgado que não me importei em passar trabalho por uma noite. Eu sabia que provavelmente nem iria conseguir dormir, eu só queria que o próximo dia amanhecesse e mais um dia começasse.
Taim - Empecilho Alvorada RS.
15 de junho de 2023.
85 km.
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