#Uruguai - Dia 06 - Cabo Polonio UY

fevereiro 10, 2024

    Finalmente eu tive a noite de sono que eu esperava. Adormeci ainda com o calor da lareira, e a cama era ótima. Acordamos sem despertador algum, acho que depois dos 130 km de ontem, nenhum de nós quis ligar o despertador. Depois de fazer um café e cozinhar alguns ovos, partimos para a estrada perto das 13h, um pouco mais tarde do que gostaríamos.

    Como de costume, sempre muito vento e boas estradas. Após poucos quilômetros andados na Ruta 10 (equivalente as rodovias BR no Brasil), um carro passou por nós e parou a uns 100 m a nossa frente. Pronto, chegou o momento em que seríamos assaltados, eu pensei. Mas felizmente era um casal de brasileiros que viu a bandeira do Brasil que eu carregava na bicicleta (no dia anterior o Ashley usou um cabo de vassoura, que encontramos no lugar que dormimos, para improvisar um mastro para uma bandeira que eu trouxe na mochila). O casal era de Curitiba, pertenciam a um motoclube da cidade e também faziam viagens de moto. Eles pararam para perguntar se queríamos comida, água ou qualquer coisa. Agradecemos educadamente dizendo que estávamos bem; eles ainda pediram para tirar uma foto conosco e disseram que se passássemos por uma cidade, que eu não lembro o nome, na Argentina, teríamos pouso no motoclube de lá se quiséssemos. Esse tipo de incentivo e preocupação era bem legal de receber.

    Ao longo de cada dia eu compartilhava nas redes sociais as aventuras do dia, e isso acabou fazendo parte da rotina de muitos dos meus amigos. Eles estavam realmente acompanhando a viagem, pois além de fotos e vídeos, eu também postava depoimentos sobre o dia a dia. O mais engraçado era receber mensagens perguntando o porque eu não havia postado o "capítulo do dia" ainda, quase que reclamando pela demora das atualizações. Olha que não foram poucos não, eu realmente transformei a viagem em uma espécie de minissérie! O Ashley fez tudo ficar ainda mais divertido, é claro. O australiano viking que pedalava o dia todo movido a cerveja e cigarro.

    No começo eu não notei, mas a cada posto (petrol station, como ele chamava) o Ashley parava para comprar duas latas de 500 ml de cerveja, e aproveitava para acender um cigarro. Em média ele devia tomar uns 6 ou 7 litros de cerveja, e fumava mais de um maço por dia. Eu não conseguia entender como ele pedalava tanto, e toda vez que eu falava isso, ele apenas dava risada dizendo que eu deveria vê-lo nos dias "felizes", aí sim eu iria me surpreender.

    As estradas continuavam boas, assim como o vento que teimava em nos acompanhar. A cidade seguinte foi Castillos. A ideia era passarmos lá para comermos algo, já que a única coisa descente que havíamos comido tinha sido no café da manhã. A cidade não tinha nada de movimento, tinha a aparência daquelas cidades do interior em que a maior atração é quando passa algum turista. E de fato éramos: dois malucos andando de bicicleta, um deles com uma bandeira do Brasil em um mastro de cabo de vassoura. Depois de acharmos um minimercado para comprar umas cervejas para o Ashley e uns chocolates para mim, seguimos viagem.

    Por pouco não pegamos o caminho errado. Estávamos na Ruta 9, e precisávamos pegar a Ruta 16 até chegar a Ruta 10. A estrada era nova, mas não tão boa quanto a principal. Os campos eram lindos, e ver aquelas paisagens ao por do sol deixava tudo mais especial ainda. Quando passamos por Aguas Dulces já estava quase escuro, e as mãos começavam a congelar. Eu estava especialmente empolgado, parte pelas histórias das cicloviagens por diversos países do Ashley, o que me fazia ficar completamente inspirado e com vontade de fazer exatamente o mesmo. Por outro lado, o fato de eu estar ali, pedalando livremente por lugares tão lindos, longe de tudo e de todos que eu conhecia, e estar sentindo frio e cansaço ao mesmo tempo que eu sentia um calor interior por estar fazendo aquilo que por meses eu planejei e finalmente poder estar ali realizando. Eu estava muito feliz, muito mais que feliz, eu não poderia estar fazendo nada que pudesse me deixar tão entusiasmado.


    É claro que eu estava com frio e muito cansado, mas isso só fazia cada segundo valer mais a pena. Puente Valizas é um vilarejo que fica às margens do arroio da grande Laguna de Castillos, e quando passamos por lá os últimos traços de luz laranja no horizonte foram tomados pela escuridão total. Poucos minutos depois chegamos até a estrada que leva até Cabo Polonio, finalmente havíamos chegado... foi o que pensamos, pelo menos.

    A estrada cortava uma floresta muito densa, e depois de passarmos por uma porteira com um guarda dentro, vimos um caminhão amarelo vindo na nossa direção, voltando de onde estávamos indo. A traseira inteira do caminhão continha bancos com as laterais protegidas com uma armação de metal, parecida com uma gaiola. Mas o que me deixou apreensivo foi o letreiro que havia na porta do caminhão: "SAFARI CABO POLONIO". Será que tinham animais soltos no parque? Comecei a ficar com medo. Por causa da mata fechada, estava tudo completamente escuro, e apesar do céu estrelado sem nuvens, a lua estava escondida pela copa das árvores. A única luz que tínhamos era a lanterna da minha bike, que até era bem forte e iluminava bastante. Mas de repente, chegamos a um ponto onde a estrada se transformou em um caminho de areia total, fofa, igual dunas de praia. Eram mais de 6 km até Cabo Polonio, e vimos que seria impossível andar toda aquela distância tendo que arrastar as bicicletas pela noite.

    Tivemos que voltar até a entrada do parque. Eram 18:30, e descobrimos que o próximo caminhão que iria até Cabo Polonio só saia às 20:00. Durante a espera, descobri um casal de brasileiros na recepção. Apesar de eu só estar falando em inglês com o Ashley, percebi que eles eram brasileiros pois tinham um sotaque estranho e não falavam espanhol muito bem. Como é bom conhecer brasileiros fora do país! Eles ficaram encantados e incrédulos que nós chegamos até lá vindo de bicicleta desde o Brasil. O Gabriel e a Luana eram de Espirito Santo, e estavam de férias conhecendo o Uruguai. O Gabriel documentava toda a viagem e fez uma pequena entrevista com a gente, mais tarde eu vi que ele contou de nós nas redes sociais, o que foi bem legal.

    Depois de esperar por quase duas horas pelo caminhão, descobrimos que não poderíamos levar as bicicletas conosco. Isso nos deixou furiosos por termos esperado à toa, e preocupados por não sabermos o que fazer. A solução foi deixar elas acorrentadas ao lado da oficina na entrada do parque. O Ashley disse que isso quebrava uma de suas regras: nunca abandonar a bike. E fazia total sentido, mas não tínhamos o que fazer. Quando o caminhão começou a passar pela areia que nos deparamos antes, percebemos que realmente nunca teríamos chegado se tivéssemos continuado de bicicleta, pois era muita areia. O caminhão chegava a balançar! Nesse momento estava fazendo um frio absurdo, meu corpo todo tremia de frio. Em meio aos balanços do caminhão, fui tirando as roupas que estavam nos alforges e as vestindo. Coloquei todos os casacos que eu havia trazido e as duas calças também. Frio demais! Quando passei a notar o céu, fiquei encantado. Ele estava repleto de estrelas, sem a presença da lua, mas a luz das estrelas eram tão fortes que hipnotizavam. Nós estávamos indo para dentro da mata numa escuridão total, mas aquele céu estrelado... era algo divino e eu nunca vou conseguir descrever. Eu já sabia, mas eu finalmente consegui visualizar o porque a Via Láctea tem esse nome. Volto a repetir: eu estava muito feliz.

    Depois de uns 10 minutos na trilha de areia pela mata, de repente chegamos à beira da praia, e apesar de estarmos somente com a luz das estrelas, tudo começou a ficar mais bonito. O som do mar, as ondas quebrando, o cheiro salgado no ar, o vento gelado que parecia queimar a pele, tudo isso ia deixando o clima cada vez melhor. Ao longe foram aparecendo algumas cabanas e chalés à luz de velas. Detalhe: Cabo Polonio não possui luz elétrica! A única energia que o vilarejo possui é por meio de geradores e energia fotovoltaica. O caminhão passou literalmente por cima de algumas ondas que morriam na areia com a maré, e nos largou no pé de uma passarela de madeira que cruzava algumas dunas de areia. O hostel que tínhamos reservado ficava a apenas alguns metros, e no caminho percebi que as ruas que mostravam no mapa do local na verdade não eram ruas, eram apenas trilhas e caminhos de areia que eram cercados por diversos casebres e hostels, quase todos em forma de contêineres. Velas acesas dentro de garrafas formavam e iluminavam o caminho e as divisórios de cada local. Era uma cena exótica, aconchegante e muito bonita, parecia que eu estava entrando no meio de uma tribo.

    Na entrada do hostel havia um bar, com duas uruguaias que nos viram chegar, eu, o Ashley e o casal de brasileiros. Logo fizemos amizade, então elas nos convidaram para irmos em uma festa de aniversário ali perto, e todos concordamos em ir. Eu estava tão animado que seria incapaz de recusar um convite para fazer qualquer coisa divertida. É claro que eu cheguei a pensar que algo perigoso pudesse acontecer, afinal eu nem as conhecia; afinal mesmo eu não conhecia ninguém! Mas eu estava animado. As duas estavam claramente bêbadas, e foram nos guiando no meio da escuridão total enquanto andávamos por dunas de areia que pareciam todas iguais. Perguntei para o casal de brasileiros se eles achavam que seríamos sequestrados, dando uma risada. Eles responderam que pelo menos queriam estar bêbados caso isso acontecesse, e também riram. O Ashley coitado estava apenas indo sem entender nada, carregando uma garrafa de cerveja em cada mão. Eu carregava uma pizza que as duas compraram no bar, e o casal também levava mais cerveja.

    Depois de andarmos um bom tempo em círculos no escuro, chegamos até uma cabana lindíssima, cheia de velas e uma lareira no meio da sala. No fim, não era realmente uma festa, e sim uma outra amiga das duas uruguaias (Mariana e Carla) que estava de aniversário. Como tínhamos cerveja e pizza, fizemos a festa! A cena das duas amigas chegando com três brasileiros e um australiano aleatórios foi muito engraçada, principalmente por causa da reação da aniversariante sem entender nada. Ouvimos muita música uruguaia, e o mais engraçado de tudo era a mistura de espanhol, português e inglês no meio da conversa. A mímica às vezes ajudava bastante! Eu estava me divertindo muito. Inclusive encontrei um ukulele para tocar. O Ashley só dava risada de tudo, enquanto bebia sua cerveja. Eu estava desde o dia 01 de janeiro sem beber, mas o momento merecia ao menos um brinde.

    Em dado momento estávamos todos rindo, até dançando (coisa que eu e o Ashley nos mostramos sermos péssimos, mesmo com a insistência das anfitriãs), bebendo e conversando. Era um momento especial, eu estava em outro país, num lugar completamente remoto, um frio e vento intenso, no meio de pessoas que eu não conhecia, e ainda assim eu nunca me senti mais livre na vida. Eu sabia que aquela cena ficaria marcada para sempre na minha memória, como tantas outras dessa viagem. O Gabriel filmou vários momentos nessa roda, inclusive filmou a hora em que eu disse que aquelas eram as melhores férias da minha vida, foi legal ele ter gravado o momento exato em que eu disse isso.

    Depois de algumas horas no chalé, encerramos a noite nos despedindo e agradecendo pelo convite. A noite estava linda, e o vento chegava a ser quente de tão gelado. O caminho de volta andando pelas dunas no escuro foi uma aventura. Quando chegamos no hostel, foi a primeira vez que vi o Ashley com aparência de bêbado: ele entrou cambaleando e rindo pelo quarto. A essa altura, por mais que eu não quisesse que a noite terminasse, nós precisávamos descansar, pois ainda faltavam muitos quilômetros até Montevidéu. Esse foi de longe o melhor dia da viagem até então, e um dos melhores da minha vida!

Punta del Diablo - Cabo Polonio UY.

17 de junho de 2023.

60 km.

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